Carlos do Carmo – Um homem no mundo

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Nasceu em Lisboa, em 1939. O fado esteve desde sempre presente na sua vida através da mãe, Lucília do Carmo, uma das grandes fadistas portuguesas. Estudou na Suíça, mas “O fado é uma expressão que pode falar da vida em todas as suas vertentes. A alegria, o sofrimento, a esperança. Pode falar de tudo.”

Ao longo de mais de 50 anos de carreira, Carlos do Carmo ultrapassou as fronteiras do fado e tornou-se uma das referências maiores da música portuguesa a nível internacional.

Houve uma fase em que se rebelou contra o fado. O que o fazia não querer seguir esse caminho?
Comecei a ouvir o fado em criança e as recordações que tenho são muito boas. Mas depois chego à adolescência e começo a ouvir Sinatra e outras músicas. Dá-se em mim uma rejeição do fado. O fado depois foi uma opção, uma escolha sincera e muito determinada. Não é impunemente que se canta meio século. É porque não se anda a enganar o público.

Como ultrapassou essa rejeição?
Sempre gostei de cantar, desde miúdo. Cantei todo o tipo de músicas que se possa pensar: brasileira, italiana, francesa, americana. Um dia, na nossa casa de fados, um grupo de amigos pediu-me para cantar um fado. Só sabia de cor um fado da minha mãe (a fadista Lucília do Carmo). Cantei com muita sinceridade o melhor que sabia. Disseram-me que tinha de cantar o fado, porque não imitava a minha mãe. Aí, fez- se luz.

Tentou trazer novas sonoridades para o fado, como o jazz, a bossa nova, a canção francesa. Foi essa rebelião inicial que o fez não seguir uma via mais clássica?
Tinha, na altura, como tenho hoje, a minha cabeça cheia de música. Procurei no fado cantar isso tudo, todas essas influências. Essa modernidade não é fictícia, não é postiça, é resultante dessa inquietação.

Ouvia críticas por essas incorporações de outros elementos no fado?
Ouvia e ouço. Isso faz parte. A crítica não é uma palavra má. Mal de nos se quiséssemos agradar a toda a gente. Mesmo os mais puristas sabem a grande dedicação e o grande esforço que tenho feito pelo fado. Sabem que onde estiver a cantar no mundo inteiro, o fado, e Lisboa, a minha terra, estão a ser bem tratados.

Fez com Ary dos Santos o disco Um Homem na Cidade. É o álbum que melhor capta as suas várias dimensões?
Na altura, em 1976, os grandes compositores de fado já tinham desaparecido. Foi aí que apareceu a nova fornada com o Paulo de Carvalho, o Fernando Tordo, o António Vitorino de Almeida. Pessoas das mais variadas áreas que, com o seu talento, fizeram fados brilhantes. Fui um saco de pancada quando o disco saiu. Diziam: ‘Isto não é nada, não é fado, são canções’. E agora dizem que foi um disco fundamental.

É a música que diz mais de si próprio ou tem outra que prefira?
Não é um problema de preferência. Temos de ser cuidadosos e compreender a escolha do público. Se o público escolhe assim, lá sabe porquê. Nos meus concertos, gostaria de cantar 16 fados e que nenhum fosse as Canoas do Tejo, a Lisboa Menina e Moça, o Bairro Alto, os Putos. Não é possível. O público optou por isso. Tenho de respeitar os seus gostos.

Saiu da casa de fados e passou a atuar em grandes salas internacionais. Consegue sentir o mesmo contato com o público?
É outro tipo de relação. Considero uma casa de fados uma extraordinária oficina. Tudo isso foi vivido. Não há nada pior para um artista do que subestimar o público. É bom lembrar que estamos a cantar para mil pessoas e cada pessoa está firme na sua cabeça. Aquilo que está a ouvir é ela que está a ouvir, o que sente é o que ela sente. E depois comunga com os outros no aplauso, no silêncio.

Porque é que acha que o fado diz tanto aos portugueses? Por ter enraizada uma certa noção de fatalismo, de destino?
Para mim, o fado não é isso. O fado é uma expressão que pode falar da vida em todas as suas vertentes. A alegria, o sofrimento, a esperança. Pode falar de tudo. Num con- certo, gosto de cantar dois fados de autêntico recolhimento. Tendo o privilégio de conhecer os mestres, não creio que o fado fosse possível só sendo cantado nessa área.

Participou em projetos que deram dimensão internacional ao fado, como o filme de Carlos Saura, a candidatura à Unesco. Vê-se como um embaixador do fado?
Não. É uma forma de estar na vida. Por tudo o que o fado me deu, alguma coisa tenho de devolver. As pessoas têm muita confiança em mim porque sabem que não estarei com ideias de protagonismo. Para isso eu tenho o palco.

O que é que mudou depois desse reconhecimento internacional? O fado passou a ser conhecido como a música de Portugal?
Não gostaria muito disso. O fado está centrado em Lisboa. É uma canção que se tornou popular, mas posso dizer que quando vou cantar ao Minho ou às Beiras é uma visita que vou fazer às pessoas. Elas têm a sua própria música. O fado não é a canção portuguesa. Temos boa música regional. Os Açores têm um cancioneiro popular extraordinário, mas mal conhecido.

Porque acha que conseguiu esta popularidade?
Se sair agora à rua, pessoas das mais diversas condições sociais, mais novas e mais velhas, dirigem-se a mim com imensa ternura e imenso respeito. Foi assim que foi feito este trajeto e sinto-me feliz por isso. Vou até dizer uma coisa que não gostaria que fosse encarada como trágica. Estou completamente preparado para morrer porque tive uma vida plena.

Texto de Pedro Barros Costa
Foto de Paulo Goulart